Quanto vale um “não” de uma mulher negra?
Sobre o mercado de trabalho, exploração da criatividade negra, "problemas de cultura" e a eterna síndrome de Princesa Isabel
Lembra que eu falei quando comecei a escrever aqui que esse Papo de Quarta era um espaço para eu escrever sem briefing, sem estratégia, só com muita pimenta na boca e as vivências que eu carrego?
Talvez hoje eu não tenha um conselho bem costurado em uma história que te faz pensar em mudar algo na sua vida amanhã mesmo. Mas acredite, esse desabafo não fala só sobre mim. Fala sobre todas nós que seguimos tentando ser alguém nesse mercado.
Minhas irmãs, em novembro do ano passado o desemprego bateu por essa porta. Passei meses pensando sobre o que escrever sobre isso, mas não o fiz. Somente corporativamente.
Tratei todas as minhas dores nos lugares certos: no pé do Santo, no meu íntimo, com minha companheira, nas terapias, com a minha comunidade de poucos e poucas amigas, mas que foram fundamentais.
Eu fiquei arrasada! Não pelo trabalho em si, mas pelo sentimento de descarte. Eu vivi todas as oscilações que uma criativa negra, fora do eixo de comunicação, passaria em uma situação dessa.
Como uma boa mulher de Oyá, inclusive, só escrevo sobre isso depois de retornar para o mercado de trabalho rs
Ao longo desse escrito, trago alguns dados para ilustrar esse contexto. Não que a gente não saiba o que vive, né? Mas, aprendemos, a duras penas, que nesse mundo, nossa voz só é firme o suficiente se vier coberta por números e dados.
Segundo o relatório “Potências (In)visíveis: a realidade da mulher negra no mercado de trabalho”, construído pela Indique Uma Preta e Box182 em 2020, a falta de oportunidades de crescimento profissional é a principal causa de insatisfação das mulheres negras.
Além disso, 51% das entrevistadas afirmaram que receber promoções foi muito difícil nos últimos anos e 54% das mulheres negras de afirmam que não se sentem reconhecidas profissionalmente.
Por aqui, tudo isso pesou. Para sobreviver ao processo da “recolocação”, foquei em meses de freelancer.
Já tinha uma cartela sólida de clientes que eu trabalhava, fortaleci ela. Encontrei outras oportunidades de prestação de serviço e eu sou capricorniana, minha gente. A gente vai somando, somando, somando, até a conta bater.
Pois, em uma dessas, me arrumei uma vaga arrombada.
Papo de experiência, um calendário de 10 posts, e uma remuneração inicial de R$600,00 para cumprir com esse escopo. Nada perto do que eu costumo cobrar, mas bora lá. Até porque, a proposta, era que a partir do outro mês seria um valor beeeeeem diferente desse e bastante considerável pensando na minha senioriade.
Capricorniana, lembra? Rapaz, isso me ensinou que tem dinheiro que não paga a maluquice. O primeiro mês passou, minha entrega aconteceu e eu recebi o valor acordado.
Fui atrás pra saber como seria a remuneração dos próximos meses e ela me pediu pra aguardar só terminar de organizar a pasta de clientes. Ok, ok… mas isso nunca aconteceu. Não comigo.
E o mesmo motivo que me fez aceitar a proposta, também me fez, novamente, cobrar a mudança. Só que quando eu o fiz, dessa vez, não houve uma tentativa de enrolação camuflada de justificativa.
Segundo uma pesquisa da FGV, em 2023, a remuneração média das mulheres negras equivale a 62% do que as mulheres não negras ganham.
Ao naturalizar isso, ela me respondeu:
“acho melhor a gente reincidir o contrato, estamos com problema de cultura”.
Cobrar um valor justo pelo meu trabalho, e cobrar que a proposta fosse cumprida, seria um problema de cultura?
Ou o problema na verdade é a desvalorização da criatividade de mulheres negras no mercado de trabalho?
Obviamente eu pontuei que isso não se tratava de um problema desse tipo. Eu respirei fundo. Mais de uma vez. Não porque me faltava argumento, mas porque me sobra lucidez para compreender que nada que eu falasse ali mudaria o pensamento daquela mulher.
Porque ela, de fato, acredita que a criatividade negra é algo barato. Eu entendi, ali, o que já tinha percebido:
O mercado até quer nossas ideias, mas não quer lidar com a nossa presença, e principalmente, com o valor que merecemos ser remuneradas.
E o mais perverso é quando a recusa, o simples ato de dizer “não” a um acordo injusto, é tratada como falha de alinhamento, como “problema de cultura”.
Fazem isso para que a gente se sinta inadequada. Mas não como um fato isolado, é estrutural. 49% das mulheres negras já se sentiram desqualificadas profissionalmente para uma vaga de emprego mesmo possuindo a formação exigida.
Então, me desculpa, minha cara Sinhá, cultura não é isso.
Cultura é o que a gente carrega na nossa bagagem, no nosso repertório. É quem nós somos.
Já esse tipo de pessoa, tem maus hábitos.
E hábito a gente muda, corta na raiz. Principalmente quando ele precariza a vida de quem sempre precisou ser dez vezes melhor.
Então, minha irmã, aprenda a dizer não. Aprenda a trazer limite para esse tipo de relação. Eu aprendi que quando uma mulher negra diz “não”, ela não está perdendo oportunidade. Ela está recuperando sua história.
Aprenda também!
Sobre essa experiência? Ela só me define na coragem de dizer não, e de escreviver sobre isso. E claro, no aprendizado.
Sigo de cá construindo outras - tantas - coisas incríveis na comunicação. Inclusive, escrever aqui.
Até quarta que vem!
Um xêro,
Maria Martini